segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CÃO TRÊS VEZES
O velho cádi, irritado com a balbúrdia que os guardas não sabiam dominar, bateu com força sobre a mesa e bradou enérgico: - Silêncio! Não quero mais ouvir discussões neste recinto! Acabemos com essa algazarra! Determino que o primeiro acusado fale, a fim de esclarecer e orientar este tribunal. Uazil Adari, o mais moço dos litigantes, percebendo que lhe cabia a vez de elucidar a Justiça, iniciou o seu depoimento nos seguintes termos:- Não sei realmente explicar, Sr. Juiz, a origem da grave desavença que tive com o meu companheiro Almalik, o Cambista. Divergimos sobre uma questão de moeda e entramos a discutir. Em dado momento Almalik atira-se contra mim e segura-me pelo pescoço. Reagi logo ( e não podia, aliás, proceder de outra forma) ao me sentir agredido. Afirma o cambista que fora por mim insultado. Como? Que injúria foi essa que tanto o melindrou?- Chamou-me de cão - interveio o outro com os olhos chamejantes, numa voz que vibrava.- Sim, Sr. Juiz - prosseguiu Uazil - confesso que chamei Almalik de cão. Dei-lhe, entretanto, esse epíteto, três vezes. Na primeira vez, interrompendo acalorada discussão, gritei, exaltado: - "És um cão, Almalik!" Longe de se mostrar ofendido, agradeceu-me, comovido, declarando que a minha afirmação traduzia o maior elogio que poderia ser feito a um homem de bem. Alguns meses depois, diante de um grupo de numerosas pessoas, apontei-o publicamente: - “O meu companheiro Amalik é um cão!” Ficou contentíssimo com essa qualidade que eu lhe atribuíra e declarou que as minhas palavras eram, no fundo, um gracejo admirável que denotava talento e presença de espírito. Hoje, finalmente, no meio do bate-boca, chamei-o ainda uma vez de cão. Ei-lo que se enfurece e se atira como um louco contra mim. Entramos em luta e, em conseqüência desse mal-entendido, fomos detidos por um guarda que nos trouxe presos como turbulentos à presença deste tribunal. Não se contentou o cádi com o depoimento que acabara de ouvir. Achou estranha aquela explicação de Uazil e deliberou, por isso, interpelar o segundo acusado:- São verdadeiras, ó Cambista, as declarações que acabam de ser feitas?– Juro que sim, ó venerável Cádi – respondeu o moço – Uazil Adari chamou-me de cão três vezes. Uma vez para elogiar-me; outra vez para proferir um inesperado gracejo que me salvou a vida; a terceira vez, ainda há pouco, para ofender a minha dignidade pessoal.– Por Allah! – exclamou o juiz surpreendido. – Não posso admitir que a mesma palavra “cão”, atirada à face de um homem, contenha significações tão diversas. Hoje, um elogio que honra; amanhã, um gracejo que salva; e mais tarde, uma injúria que magoa! Para atender à curiosidade do judicioso cádi, Almalik, o cambista, depois de pequeno silêncio, narrou o seguinte:- Certa vez, junto à fonte de Grenah, numa roda de amigos, conversávamos animadamente. Em dado momento falou-se sobre a fidelidade e um dos presentes censurou aqueles que esquecem as obrigações contraídas, as promessas e as dívidas.... nessa ocasião intervém Uazil e voltando-se para mim declarou com firmeza: - “Em matéria de fidelidade, ó Almlik, és um cão!” Ora, sendo o cão o símbolo da fidelidade, era evidente que as palavras de Uazil traduziam um grande elogio que agradeci penhorado. Alguns meses depois, quando nos encontrávamos em viagem pelo interior de Nova-Caledônia, caímos prisioneiros dos ualus, tribo perigosa de canibais. No momento em que éramos conduzidos para o lugar do suplício, Uazil, que conhecia o idioma dos bárbaros, gritou, como um aviso terrível para os selvagens: _ “O meu companheiro Almalik é um cão!” Ora, nessa tribo de canibais, o cão é um animal sagrado e o estrangeiro que recebe de um branco o epíteto de cão adquire entre os ualus privilégios e regalias excepcionais. A oportuna intervenção de Uazil trouxe uma conseqüência espantosa. Os selvagens soltaram os laços que me prendiam, ajoelharam-se diante de mim e me elegeram em divindade. Graças ao estratagema de Uazil conseguimos fugir ao cativeiro e morte. O chamar-me de cão, naquele instante trágico fora, portanto, um gracejo felicíssimo que só poderia ocorrer a uma pessoa de imaginação. Hoje, entretanto, quando deixávamos o bazar, Uazil, julgando-se prejudicado numa transação que havíamos feito, gritou, colérico: - “Não passas de um cão, miserável!” Só um desbriado, Sr. Juiz, ouviria impassível.... Sorriu o bom cádi ao ouvir aquele relato. Ordenou que os dois litigantes fossem postos em liberdade e lavrou, sobre o caso, uma sentença que foi escrita, em trinta e tantos versos, na mesquita mais rica de Bagdá.Extraí essa pérola, que repasso à consideração dos meus amigos, da coleção de Malba Tahan, do volume denominado “Maktub! (estava escrito!) – O Livro do Destino” – Conquista Editora – 1961 – pg. 131.

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